Como Pedro descobriu que tinha se tornado uma
“máquina humana” – ou um “bombado psíquico”. E como sua história fala do
nosso tempo e de muitos de nós
Pedro – o nome é fictício porque ele não quer ser identificado – é um
cara por volta dos 40 anos que adora o seu trabalho e é reconhecido pelo
que faz. É casado com uma mulher que ama e admira, com quem tem
afinidade e longas conversas. Juntando os fundos de garantia e algumas
economias os dois compraram um apartamento anos atrás e o quitaram em
menos de um ano. Este é o segundo casamento dele, e a convivência com os
dois filhos do primeiro é constante e marcada pelo afeto. Ao contrário
da regra nesses casos, a relação com a ex-mulher é amigável. Pedro tem
vários bons amigos, o que é mais do que um homem pode desejar, acha ele,
porque encontrar um ou dois bons amigos na vida já seria o bastante, e
ele encontrou pelo menos uns dez com quem sabe que pode contar na hora
do aperto. A vida para Pedro faz todo sentido porque ele criou um
sentido para ela.
Ótimo. Ele poderia ser personagem de uma daquelas matérias sobre
sucesso, felicidade e bem-estar. Mas há algo estranho acontecendo. Algo
que pelo menos Pedro estranha. Há dois anos, Pedro toma Lexapro (um
antidepressivo), Rivotril (um ansiolítico, tranquilizante) e Stilnox (um
hipnótico, indutor de sono). Dou os nomes dos remédios porque os
psicofármacos andam tão populares que se fala deles como de marcas de
geleia ou tipos de pão. E o fato de nomes tão esquisitos estarem na boca
de todos quer dizer alguma coisa sobre o nosso tempo.
Pedro conta que a primeira vez que tomou antidepressivo, anos atrás,
foi ao perder uma pessoa da família. A dor da perda o paralisou. Ele não
conseguia mais trabalhar. Queria ficar quieto, em casa, de preferência
sem falar com ninguém. Nem com a sua mulher e com os filhos ele queria
conversar. Pedro só queria ficar “para dentro”. E, quando saía de casa,
sentia um medo irracional de que algo poderia acontecer com ele, como um
acidente de carro ou um assalto ou ser atingido por uma bala perdida.
Ele mesmo pediu indicação de um bom psiquiatra a uma amiga que trabalha
na área. Pedro sentia que estava afundando, mas temia cair na mão de
algum charlatão do tipo que receita psicofármacos como se fossem
aspirinas e acredita que tudo que é do humano é uma mera disfunção
química do cérebro.
O psiquiatra era sério e competente. Ele disse a Pedro não acreditar
que ele fosse um depressivo ou que tivesse síndrome do pânico, apenas
estava em um momento de luto. Precisava de tempo para sofrer, elaborar a
perda e dar um lugar a ela. Receitou um antidepressivo a Pedro para
ajudá-lo a sair da paralisia porque o paciente repetia que precisava
trabalhar. A licença em caso de luto – dois (!!!!) dias, segundo a
legislação trabalhista – já tinha sido estendida por um chefe
compreensivo. Por Pedro ser muito bom no que faz recebera o privilégio
de duas semanas de folga para se recuperar da perda de uma das pessoas
mais importantes da vida dele. Pedro não queria “fracassar” nessa volta.
E não “fracassou”. Com a ajuda do antidepressivo, depois de algumas
semanas ele voltou a produzir com a mesma qualidade de antes. Três meses
depois da morte de quem amava, ele já voltara a ser o profissional
brilhante.
Pedro tomou o antidepressivo por cerca de um ano, com acompanhamento
rigoroso e consultas mensais. Como não agradava nem a ele nem era o
estilo do psiquiatra que escolheu, pediu para parar de tomar o remédio. O
psiquiatra concordou, e Pedro foi diminuindo a dose da medicação até
cessar por completo. Tocou a vida por mais ou menos um ano e meio.
Neste intercurso, ele se tornou ainda mais criativo. Aumentou o número
de horas de trabalho, que já eram muitas, porque se sentia muito
potente. Pedro multiplicou o seu sucesso, que sempre foi medido por ele
não pela quantidade de dinheiro, mas de paixão. E achava que tudo estava
maravilhoso até começar a ter insônia. Pedro dormia e acordava,
sobressaltado. Sem conseguir voltar a dormir, pensamentos terríveis
passavam pela sua cabeça. Pedro pensava que perderia todo o seu sucesso,
a sua possibilidade de fazer as coisas que acreditava e às vezes temia
morrer de repente. As noites de Pedro passaram a ser povoadas por
catástrofes imaginárias, mas bem reais para ele. E, toda vez que saía de
casa pela manhã, voltara a ter medo de ser atingido por alguma
fatalidade, por algo que estaria sempre fora do seu controle.
Algumas semanas depois do início da insônia, Pedro paralisou de novo.
Não conseguia trabalhar – e este, para Pedro, era o maior dos pesadelos
reais. Voltou ao consultório psiquiátrico e há dois anos toma os três
remédios citados. Pedro, que sempre tinha olhado com desconfiança para a
prateleira de psicofármacos, começou a achar natural precisar deles
para enfrentar os dias e também as noites. “Que mal tem tomar uma pílula
para dormir?”, dizia para a mulher, quando ela o questionava. “Ou tomar
umas gotas de tranquilizante para não travar o maxilar de tensão? Ou 15
mg de antidepressivo para vencer a vontade de se atirar no sofá e ficar
apenas olhando para dentro?” Sua mulher conta que ele parecia o Capitão
Nascimento, em “Tropa de Elite”, tomando comprimidos no banheiro e
dizendo à esposa: “Isso aqui não tem problema nenhum. Todo mundo faz
isso. Não tem problema nenhum”.
Em 2011, Pedro teve momentos em que achou que tudo estava muito bem
mesmo. E, se para tudo ficar tão bem era preciso tomar algumas pílulas,
não tinha mesmo problema nenhum. Pedro talvez nunca tenha produzido
tanto como neste ano e, por conta disso, até ganhou um aumento de
salário sem precisar pedir. Mas, às vezes, não com muita frequência, ele
se surpreendia pensando que algumas dimensões da sua vida tinham se
perdido. Pedro não tinha mais o mesmo desejo pela sua mulher, e o sexo
passou a ser algo secundário na sua vida. Não tinha mais tanto desejo
pela sua mulher nem desejo por mulher alguma. “Efeito colateral do
antidepressivo”, conformou-se.
Pedro trabalhava tanto que tinha reduzido às idas ao cinema, os
encontros com os amigos e a pilha de livros ao lado da cama continuava
no mesmo lugar. Ele também tinha perdido o interesse por viagens de
lazer com a família, porque estava ocupado demais com seus projetos
profissionais. Pedro constatou que os momentos de subjetividade eram
cada vez mais escassos na sua vida. E, embora o trabalho lhe desse muita
satisfação, ele tinha eliminado uma coleção de pequenos prazeres do seu
cotidiano. Por volta do mês de setembro, Pedro começou a sentir uma
difusa saudade dele mesmo que já não conseguia ignorar.
“Devagar eu comecei a perceber que tinha criado uma vida que não podia
sustentar sem medicação. E tinha aceitado isso. Como, acho, boa parte
das pessoas que conheço e que tomam esse tipo de remédio”, conta. “Eu só
consigo fazer tudo o que faço porque tenho essa espécie de
anabolizante. Sou um bombado psíquico. Vivo muitas experiências todo dia
e não tenho nenhum tempo para elaborar essas experiências, como não
tive tempo para elaborar o meu luto. É uma vida vertiginosa, mas é uma
vida não sentida. Às vezes tenho experiências maravilhosas, mas, na
semana seguinte, ou na mesma semana, já não me lembro delas, porque
outras experiências se sobrepuseram àquela. E sei que só durmo porque
engulo pílulas, só acordo porque engulo pílulas. Só suporto esse ritmo
porque engulo pílulas. Até pouco tempo atrás eu achava que tudo bem,
então eu ficaria tomando pílulas pelo resto da vida. Em vez de mudar meu
cotidiano para que ele se tornasse possível, eu passei a esticar meus
limites porque sabia que podia contar com os medicamentos e, se voltasse
a cair, me iludia que bastaria aumentar a dose. Eu me tornei uma
equação: Pedro + medicamentos. Aos poucos, porém, comecei a perceber que
não é essa vida que eu quero para mim. Tem algo errado quando a vida
que você inventou para você só é possível porque você toma três
comprimidos diferentes para poder vivê-la. E, talvez, daqui a pouco, eu
esteja tomando Viagra para ter desejo pela mulher que amo. Isso aos 40
anos. E, com o tempo, os efeitos colaterais desses remédios vão causar,
pelo prolongamento do uso, doenças em outras partes do meu corpo. Eu sei
que muita gente, como eu, já se habituou a achar que é normal viver à
custa de pílulas. Mas, se você parar para pensar, isso é uma loucura.
Isso, sim, é doença. E os médicos estão nos mantendo doentes, mas
produtivos, usando os remédios para ajustar a máquina a um ritmo que a
máquina só vai aguentar por um certo tempo. De repente, percebi que eu
era uma máquina humana. E que eu estava usando remédios legais como se
fossem cocaína e outras drogas criminalizadas. E o mais maluco é que
todo mundo acha que tenho uma vida invejável e que está tudo ótimo
comigo. Por serem drogas legais, por causa da popularização de coisas
como depressão e síndrome do pânico, todo mundo acha normal eu tomar
pílula para ter coragem de sair da cama de manhã e pílula para conseguir
dormir sem ter medo de morrer no meio da noite. De repente, me caiu a
ficha, e eu comecei a enxergar que estamos todos loucos, a começar por
mim. Loucos por achar que isso é normal.”
Com a autorização de Pedro, procurei o psiquiatra dele para uma
conversa. É um profissional inteligente e sério. E foi de uma
honestidade rara. Perguntei a ele porque receitava psicofármacos para
gente como Pedro. “Porque vivemos num mundo em que as pessoas não têm
tempo para elaborar o que é do humano. Muitas vezes eu me deparo com
essa situação no consultório. Vejo uma pessoa ali me pedindo
antidepressivo porque não consegue mais trabalhar, não consegue mais
tocar a vida. Eu sei que ela não consegue mais trabalhar nem tocar a
vida porque é a sua vida que se tornou impossível, porque precisa de um
tempo que não tem para elaborar o vivido. É óbvio que não é possível,
por exemplo, elaborar um luto ou uma separação em uma semana e seguir em
frente como se nada tivesse acontecido. Assim como não é possível viver
sem dúvidas, sem tristezas, sem frustrações. Tudo isso é matéria do
humano, mas o ritmo da nossa vida eliminou os tempos de elaboração. Essa
pessoa não é doente – é a vida dela que está doente por não existir
espaço para vivenciar e elaborar o que é do humano. Só que esse cara
precisa trabalhar no dia seguinte e produzir bem ou vai perder o
emprego. Então eu dou o antidepressivo e faço um acompanhamento sério,
com psicoterapia, para que esse cara possa dar um jeito na vida e parar
de tomar remédios. É um dilema e não tem sido fácil lidar com ele, mas é
neste mundo que eu exerço a profissão de psiquiatra. Porque no
tratamento da depressão, de verdade, a doença, de fato, é muito difícil
obter resultados, mesmo com os medicamentos atuais. Assim como outras
doenças psíquicas, quando são doenças mesmo. Os resultados são muito
mais lentos – e às vezes não há resultado nenhum. A maioria das pessoas
que estamos medicando hoje não é doente. E por isso o resultado é rápido
e parece altamente satisfatório. Estas pessoas só precisam dar conta de
uma vida que um humano não pode dar conta.”
Pedro, que nunca foi adepto das famosas resoluções de Ano-Novo, desta
vez se colocou uma que talvez seja a empreitada mais difícil que já
enfrentou. “Estou reduzindo progressivamente a dose dos medicamentos e
vou parar até março. Minha meta, em 2012, e talvez leve muitos
réveillons para conseguir alcançar isso, é criar uma vida possível para
mim. Uma vida e uma rotina que meu corpo e minha mente possam dar conta,
uma vida em que seja possível aceitar os limites e lidar com eles, uma
vida em que eu tenha tempo para sofrer e elaborar o sofrimento, e tempo
para usufruir das alegrias e dos pequenos prazeres e da companhia dos
que eu amo. Sei que vai ter um custo, sei que vou perder coisas e talvez
tenha até de mudar de emprego, mas acho que vai valer a pena. Não quero
mais uma mente bombada, nem ser uma máquina bem sucedida. Quero só uma
vida humana.”
Torço por Pedro, torço por nós.