Ando ponderando muito sobre a questão do negro, as religiosidades brasileiras, a musicalidade brasileira, etc.
Segue um texto de Martinho da Vila sobre "o Ritual do Pagode"
O RITUAL DO PAGODE
Batuques, pagodes, partidos-altos,
batuqueiros, pagodeiros e partideiros se confundem e se fundem, desde o início
quando tudo começou nas senzalas.
Há diferenças musicais imperceptíveis
entre o partido alto e o samba de partido-ato. Este é quase um samba de
terreiro atualmente chamado de “quadra” que são feitos para animar os ensaios.
Tem a primeira parte definida e a segunda improvisada em maiores regras. Já o
partido-alto é composto com um refrão e uma parte improvisada em cima do tema.
Tem característica rítmica definida e maneira especial de dançar. O
partido-alto creio eu surgiu nas rodas de batucadas que já não existem
mais...Ah! como eram emocionantes. Nas escolas de samba, quando terminavam os
ensaios e as visitas iam embora, começavam as batucadas.
Eram um barato! Recolhidas as peças de
bateria, ficavam somente um ou dois pandeiros. Formavam-se uma roda, o
partideiro puxava o refrão, a turma repetia e firmava o compasso com palmas de
mão. Seguia-se um desafio de versos e pernadas. No meio da roda, um partideiro
animando e um outro “plantado”, isto é, parado com os calcanhares juntos,
braços abertos para equilibrar melhor o corpo, joelhos meio dobrados e olhos
atentos nos pés de um outro, que dançava para distraí-lo, devagar, devagarinho,
gingando e fazendo mesuras para, repentinamente manda-lhe uma rasteira. Podia
se dançar em volta do “plantado”, mas não se dava rasteira por traz, isto é,
ninguém “pegava” pelas costas, muitos preferiam “plantar” com os joelhos e
ponta dos pés unidos, calcanhares separados, mais em ambos os casos, o
”plantado” não podia se mexer. Os mais folgados plantavam com uma perna só e a
outra fazendo um quatro, o que facilitava muito o corcoveio ou o salto de
banda, mas, nesta posição o parceiro preferia sempre bater “o firme” e quando
pegava de jeito a queda era feia. Muitos braços se quebravam nas batucadas.
Alguns especialistas batiam de “letra” o parceiro caia de lado. Era
desmoralizante. Neste caso o batuqueiro que aplicava a “letra”, corria o risco
de cair se o “plantado” estivesse bem firma no chão. Mais desmoralizante ainda.
O “amarrado”, era a pernada mais bonita. Com o joelho desequilibrava-se o
parceiro e encaixava-se o gancho com a mesma perna. Não era necessário força e
a queda era lenta.
Os grandes batuqueiros eram chamados de
“pernas”. Lucas era um reduto de “pernas”. Eu ainda miúdo batuquei com muitos
“pernas” famosos como Timboca, Juarez, o Ailton Cuiqueiro e o Murilão, todos da
Boca do Mato, bem como o Clovis e o Valdô Tigre, ambos da Água Santa, ou o
Jonjoca e o Xisto, mestre-sala da Cachoeirinha e o Tidoca do Cabuçu. O Guarnair
da Chave de Ouro, no Tabuleiro da Bahiana, na Cachoeirinha, na Cachoeira e nos
piqueniques da Moreninha e Paquetá, locais de reunião de grandes batuqueiros.
As batucadas se acabaram, mas a dança do
partido alto ficou. E como é bonito nos pés do Ubirani do Cacique, bem como nos
pés do Paulinho da Viola, Dona Ivone Lara, Itacy do Império, Tia Nenen e Tia
Zezé do Salgueiro, Genilsom Veneno da Mangueira, Dona Doca e toda a Velha
Guarda da Portela.
Enquanto o canto do partido ganhou novas
formas, penetrou nos grandes acontecimentos musicais, entrou no disco e atingiu
o consumo, os pagodes onde são incluídos todas as formas de samba dançavel
livremente, foi chegando de mansinho e continua ganhando terreno. Dos fundos de
quintal dos subúrbios, foi para as portas de botequins, no centro da cidade,
casas noturnas, teatros.
O pagode é uma festa e como gênero de
música é qualquer samba com a linguagem e temas do cotidiano. A Fina Flor do
Samba, no Teatro Opinião era um grande pagode assim como foi também o
Zicartola, organizado em 64 na rua da Carioca e, mais ou menos na mesma época
Candeia organizava o grupo de pagodeiros registrado em disco como Mensageiros
do Samba, do qual faziam parte o próprio Candeia tocando cuíca, e mais,
Casquinha, Bubu, Davi do Pandeiro, Arlindo e Picolino. O Zicartola deu origem
ao grupo Rosa de Ouro formado por Paulinho da Viola, Nelson Sargento, Jair do
Cavaquinho, Elton Medeiros, Anescarzinho, Aracy Cortes e Clementina de Jesus.
Que maravilha era o Rosa de Ouro! Alguns anos depois o grupo passou a se chamar
Os Cinco Crioulos com Mauro Duarte em lugar de Paulinho da Viola que ganhava
vida própria, assim como Aracy e Clementina. Zé Keti também na briga deu a sua
colaboração com o grupo A Voz do Morro, que no duro do duro, era a mesma
patota: Elton, Jair, Anescarzinho e Paulinho acrescido de Zé Keti, Oscar Bigode
e Zé Cruz que tocava chapéu de palha e depois o grande Nelson Sargento. O
pagode já está acontecendo no ambiente familiar dos apartamentos.
Pra se formar um pagode em casa, basta
reunir um grupo de amigos que esteja a fim de vadiar em comunidade, servir
cachaça, cerveja e batida como bebida; mortandela, salaminho e pastel ou
qualquer outro salgadinho como petisco. Colocar um disco na vitrola e deixar o
pessoal batucar em cinzeiros, garrafas, copos, pratos, panelas, cada um a sua
maneira, tentando acompanhar o ritmo. Os mais desinibidos devem incentivar os
outros a libertar o corpo, soltar as gargantas, mexer com as mãos. Devagarinho
vai se criando o clima, e antes da terceira hora o pagode esta formado. Por
favor, nada de serviçais uniformizados. Misturem os empregados com as revistas,
pois negro trabalhando em pagode sem poder participar é tortura. Bem, fica
melhor sem aparelhagem de som, mas tem que ter uma boa turma que esteja por
dentro dos refrões e partidos, um que toque tan-tan, outro pandeiro, um outro
mais cavaquinho em pagodeiro que saiba puxar os sambas que a gente bota no ar,
mas não podem faltar os sons do Zeca Pagodinho, do Almir Guineto, Bezerra da
Silva, Grupo Fundo de Quintal...
No dia seguinte, uma sensação de
liberdade, assobios pelas ruas, mãos batucando nos volantes do trânsito
congestionado.
Atenção! É importante que as bebidas
quentes sejam trazidas pelos convidados e que as geladinhas sejam compradas na
hora, aos poucos, com todos participando da vaquinha.
Tem mais. Pagode sem mulher dando sopa
não dá pé e só fica realmente “da pesada” quando rola uma sopa com várias
colheres no mesmo prato pra se tomar em conjunto. É o ritual.
Texto extraído da contracapa do disco
Martinho da Vila Batuqueiro (1986), gravadora RCA.